quinta-feira, 9 de junho de 2011

Filho de camponês morto em Rondônia vive clandestino há 15 anos


Claudemir Gilberto Ramos, filho de Adelino Ramos (Dinho) assassinado na semana passada, é um dos sobreviventes do massacre de Corumbiara (RO). Na entrevista, concedida com exclusividade ao repórter Guilherme Balza, da UOL, ele disse que se mantém perambulando país afora, sem emprego e residência fixa, pela criminalização que sofrem os movimentos sociais.

Foragido da Justiça e escondido de pistoleiros. É assim que Claudemir Gilberto Ramos, 38, resume como foi sua vida nos últimos 15 anos. Ele é um dos sobreviventes do massacre de Corumbiara (RO), ocorrido em 9 de agosto de 1995, e, desde então, se esconde perambulando país afora, sem emprego e residência fixa, ocultando sua identidade.

A reportagem chegou até Claudemir por meio de um intermediário e só teve contato com o entrevistado no local e no momento da conversa. O entrevistado recebeu o UOL Notícias nesse domingo (5), em um momento tenso no meio rural brasileiro, com cinco camponeses mortos na região Norte nas últimas duas semanas.

Para o entrevistado, mais do que tenso, o momento é de dor: seu pai, Adelino Ramos, conhecido como Dinho, é um dos cinco camponeses mortos. Liderança do Movimento Camponês Corumbiara (MCC), surgido um ano após o massacre, ele foi assassinado no último dia 27, em Vista Alegre do Abunã (distrito de Porto Velho). Claudemir não via o pai há cerca de dez anos, assim como não vê as duas filhas há quatro.

Com aparência cansada em razão da rotina soturna, antes de começar a entrevista Claudemir fez uma oração silenciosa, seguida por um longo suspiro. “É difícil”, foi a expressão mais repetida por ele ao longo da conversa, que durou mais de uma hora, em meio a momentos de choros e digressões.

A versão de Claudemir para o massacre
O massacre de Corumbiara, no qual dez sem-terra e dois policiais militares morreram - embora os sem-terra falem em até 40 mortos -, é uma história pouco conhecida da maioria dos brasileiros, O resultado, porém, indica que, como nos massacres do Contestado, Canudos, Carandiru e Carajás, o aparato militar estatal agiu com excesso de truculência e despreparo.

O conflito ocorreu na fazenda Santa Elina, que possuía 20 mil hectares e era considerada devoluta (terra pública, tomada por terceiros, em processo de devolução ao Estado). A área havia sido ocupada por mais de 600 famílias sem-terra 23 dias antes do massacre. Na versão de Claudemir, a matança foi ordenada por fazendeiros da região, que viam no sucesso da empreitada dos sem-terra um exemplo capaz de incentivar outras ocupações.

A violência adotada pela polícia, na avaliação do entrevistado, foi motivada por vingança. Dias antes do massacre, durante uma tentativa de reintegração, os camponeses, armados com espingardas de caça, foices e motosserras, teriam forçado cerca de 20 PMs a se renderem, após um sem-terra ter sido atingido nas costas por um tiro disparado por um policial.

“Não somos hipócritas, não. A gente tinha espingarda de caça, ferramentas de trabalho, foice... A gente tinha um grupo de vigília também. As armas que tínhamos foram distribuídas em um grupo de 150 homens que faziam a vigília para não receber ataques dos pistoleiros. Isso foi a salvação para não morrer mais gente antes do massacre”, diz.

Os PMs foram liberados pelos sem-terra, mas, depois do episódio, intensificaram a perseguição e as provocações aos acampados, que ocorriam desde o início da ocupação, segundo Claudemir. Em paralelo, uma comissão de negociação formada por representantes do governo do Estado, Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) e parlamentares petistas de Rondônia tentava encontrar um final justo para a ocupação.

As intenções da comissão foram em vão. Claudemir afirma que na tarde de 8 de agosto dois policiais, aparentemente com boa vontade, foram até o acampamento com uma proposta vantajosa aos acampados. Empolgados, os sem-terra chegaram até a comemorar, acreditando que a terra seria desapropriada e entregue a eles.

De acordo com Claudemir, porém, a aparente disposição dos policiais era despiste para o ataque. “Eles trapacearam, nos iludiram”, afirmou. Por volta de 2h do dia 9, os sem-terra acordaram com uma chuva de balas sobre o acampamento, que havia sido montado sob a copa de árvores altas. Os camponeses revidaram os disparos, e o tiroteio terminou por volta de 7h, quando a munição dos sem-terra acabou.

A partir daí, os quase 200 policiais militares, encapuzados ou com os rostos pintados, auxiliados, segundo Claudemir, por mais de 400 pistoleiros que estariam vestidos com fardas da polícia, invadiram o acampamento, destruíram os barracos e iniciaram as torturas e execuções contra os sem-terra. Uma das torturas consistia em obrigar os filhos dos camponeses pisotearem os pais, que estavam deitados no chão.

“A gente ficou de bruços no chão. Quem olhasse para cima, tomava tiro na nuca. As crianças eles colocaram para correr em cima dos adultos. Inclusive, nessa ação mataram a menina Vanessa, de seis anos, porque ela saiu correndo, como se fosse fugir, e um fardado atirou nas costas dela. Essa cena eu vi. A criança morreu nos braços da mãe”, diz Claudemir, conhecido na região também como Pantera.

“Eu apanhei muito. Fui muito torturado. Eles cortaram minha orelha com baioneta de fuzil. Meus dentes da frente foram todos quebrados. A última cena que eu vi foi minha mãe gritando ‘não mate meu filho’ e um fardado colocando a arma dentro da boca dela. Aí eu recebi uma paulada na cabeça e só fui acordar no hospital.”

Segundo Claudemir, seus companheiros lhe relataram que seu corpo fora jogado dentro de um caminhão, onde os mortos estavam depositados, e levado até o necrotério de Colorado do Oeste (RO). Lá, ele teria sido salvo por representantes da Igreja e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), que acompanhavam os desdobramentos do massacre.

De lá, Claudemir foi levado para o hospital de Vilhena (RO), onde relata que quase foi morto duas vezes por policiais. À época, o camponês, que estava em uma cadeira de rodas, consequência das torturas que sofreu em Corumbiara, viajou para São Paulo, onde foi tratado no Hospital das Clínicas, e começou sua fuga, ajudado por sindicalistas.

Na primeira visita à Rondônia após o massacre, em 1996, Claudemir conta que sofreu uma tentativa de homicídio quando trafegava por uma estrada com sua moto. O atirador errou o alvo, mas ao camponês valeu como aviso de que não era seguro ficar no Estado.

Enquanto fugia dos pistoleiros viajando pelo Brasil, Claudemir teve uma “companheira”, com a qual teve duas filhas, uma com nove anos e outra com 13. A mulher, no entanto, não suportou a pressão da vida clandestina.

“Eu tive desavença com a minha ex-esposa e a gente se separou, mas também foi consequência da luta. A perseguição é demais. Não é fácil para uma mulher ter estrutura para aguentar a perseguição. Hoje eu tenho uma nova companheira, mas estou vendo que uma hora vou perdê-la. Eu quero construir minha vida, minha família, eu não sou bandido. Mas não é fácil”, afirma.

Julgamento “preconceituoso”
Em 2000, o Tribunal do Júri condenou Claudemir a oito anos e meio de prisão pela morte dos dois policiais militares e por cárcere privado dos sem-terra durante o massacre. Cícero Pereira Leite também foi condenado. A denúncia do Ministério Público, que culminou nas condenações, foi fundamentada em investigação da Polícia Civil, que, por sua vez, utilizou como referência apuração conduzida pela Polícia Militar. Em 2005, esgotaram-se os recursos de Claudemir.

Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), divulgado em 2004, concluiu que faltou independência, autonomia e imparcialidade no julgamento. Com base neste relatório, o Comitê Nacional de Solidariedade ao Movimento Camponês de Corumbiara atualmente reivindica ao governo federal esforços para que seja realizado um novo julgamento.

“Meu julgamento foi preconceituoso. Se o corpo de jurados não era de fazendeiros, era orientado por eles. Por isso fui condenado. Eu não matei ninguém, eu não roubei”, reclama o camponês. “Olhem no meu processo se tem prova do que eu fui acusado, se tem prova que eu fui pego com arma. Ao contrário, fui torturado brutalmente.”

Se preso, Claudemir deverá ser conduzido ao presídio Urso Branco, em Porto Velho, um dos campeões em rebeliões e chacinas entre as detenções do país. Ele sabe que lá não duraria muito. “A gente não sabe qual o fazendeiro, mas em Corumbiara e em Colorado corria o boato de que o ‘Claudemir, o Pantera seria assassinado’, e teria um preço de R$ 50 mil para quem fizesse a minha cabeça”, conta.

Morte do pai
Claudemir é um dos filhos de Adelino Ramos, natural do Paraná, que se mudou com os três filhos e a mulher para Rondônia. Antes de se tornar sindicalista e líder camponês, Adelino ganhava a vida como pequeno produtor, comercializando as verduras que produzia. Como ironia do destino, foi assassinado a tiros em frente às duas filhas e à segunda mulher, enquanto vendia as hortaliças.

“Se é para entregar a vida para que as coisas melhorem, minha vida está a disposição da causa. Perder o pai, igual eu perdi, não é fácil, Meu pai chegou em Rondônia com nós e para nos sustentar vendia verdura. E ele morreu vendendo verdura para sustentar as duas filhas pequenas.”

“Essa perseguição não é porque tinha um grupo de madeireiros querendo matar meu pai, é porque quer incriminar os movimentos sociais no país todo", opina. "Eu elogio o governo do Lula e o governo da Dilma. Muita coisa foi feita nas favelas, no Nordeste, mas e a reforma agrária? Os camponeses vão ter que morrer todos?”, questiona.



@http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/06/06/escondido-da-justica-e-de-pistoleiros-filho-de-campones-morto-em-rondonia-vive-clandestino-ha-15-anos.jhtm assista ao vídeo da entrevista e veja as iamgens do desmatamento.

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